[Resenha] Saboroso Cadáver de Agustina Bazterrica
- Ana Carolina Camargos
- 24 de set.
- 4 min de leitura
Houve um tempo em que as distopias dominaram a indústria, seja literária ou cinematográfica. No entanto, muitas delas seguiam uma fórmula previsível: em meio à destruição, surgia um líder, a revolução acontecia e, no fim, tudo dava certo. Não é desse tipo de distopia que falamos quando nos referimos a Saboroso Cadáver. Aqui, trata-se de um futuro distópico em que a realidade é cruel, as pessoas se tornam cruéis por consequência disso e, infelizmente, não há esperança. É um livro sobre o canibalismo institucionalizado, sobre o perigo de não ser criticamente letrado para tomar as próprias decisões e sobre outros temas de grande relevância. Esse foi o livro que discutimos em agosto, e aqui estão nossas considerações a respeito dele.

Considerações da Hillary:
Uma discussão atual, frequente e necessária sobre a ética da alimentação, a ética do consumo, a falta de ética da desumanização de minorias ou de maiorias odiadas. Além disso, ela ainda consegue nos fazer enxergar ações racistas que cercam o ser humano, bem como o patriarcado, que delimita o lugar da mulher à reprodução e satisfação masculina.
A “normalidade” estranha dessa nova sociedade é desenhada sob palavras, que é aquilo que nos faz e nos representa. Se não chamamos algo ruim pelo nome, então aquilo deixa de ser ruim. É só lhe dar um nome bonito, sofisticado, transformar em algo necessário e não desumano.
Agustina explicou que escreve o que lhe dói: “O que sai de mim é tudo aquilo que me interpela, tudo o que me parece injusto.”. Assim, o que lemos de escritoras que vivem nossa sociedade também nos interpela, também nos parece injusto. Também nos dói.
Considerações da Ana Claudia:
Saboroso Cadáver, de Agustina Bazterrica, apresenta-se como uma narrativa distópica que aborda, de forma crua e perturbadora, os limites da moralidade e a construção social da ética. A obra explora a ambiguidade moral do protagonista, cujas ações inicialmente suscitam questionamentos sobre certo e errado, estabelecendo um diálogo com dilemas éticos contemporâneos. Bazterrica utiliza o grotesco do canibalismo institucionalizado como metáfora para o consumismo extremo, a desumanização e a fragilidade dos valores sociais.
Do ponto de vista estrutural, o livro mantém uma coerência narrativa consistente, a transição da primeira para a segunda parte sinaliza que não há possibilidade de redenção ou transformação moral, e o desenvolvimento do personagem reforça sua conveniência ética frente à sociedade que o cerca. A transgressão moral fica clara em trechos como:
"Quando acaba, levanta-a e a observa na chuva. Parece frágil, quase translúcida, ele a vê inteira. Aproxima-se para sentir o cheiro de jasmim e, sem pensar, a abraça [...] Acaricia a garganta dela. Quem agora treme é ele. Tira a calça jeans e fica nu. Sua respiração se acelera. Continua abraçando-a na chuva. O que gostaria de fazer é proibido. Mas faz." (p. 106)
O desfecho, portanto, reafirma a lógica implacável e a crítica social presente ao longo de toda a obra, consolidando Saboroso Cadáver como uma reflexão sobre os mecanismos de normalização da violência e a crise de valores humanos em contextos extremos.

Considerações da Ana Carolina:
Entendemos que na leitura o sentido de um texto não pertence ao escritor, mas ao leitor que o interpreta, preenchendo lacunas com suas próprias vivências. É nessa zona de encontro entre obra e expectativa que se torna interessante pensar Saboroso Cadáver, de Agustina Bazterrica. Afinal, o romance rompe com o imaginário distópico mais comum das últimas décadas marcado por resistência, revolução e finais redentores e entrega, em vez disso, uma sociedade anestesiada e manipulada, cujo destino se cumpre sem salvação possível. Mas o que acontece quando nossas expectativas ultrapassam os limites do próprio texto?
No caso de Saboroso Cadáver, temos uma distopia alinhada ao horror e ao grotesco. Acostumados, sobretudo na última década, a narrativas distópicas que apresentam revoluções, resistências e finais em que “o bem sempre vence”, muitos leitores podem se frustrar. Afinal, aqui não há luta, não há resistência, há apenas uma sociedade manipulada, quase destituída de pensamento crítico. O final, por isso, pode soar decepcionante para aqueles que buscam na literatura um refúgio contra a dureza da realidade ou uma promessa de que tudo terminará bem.
Entretanto, a literatura não tem compromisso em atender nossos desejos. Julgar a obra como “ruim” apenas porque não oferece a catarse esperada seria injusto. O romance de Bazterrica trata de uma temática cruel e brutal, com violência gráfica que exige estômago forte do leitor. O desfecho é coerente com a lógica distópica apresentada, pois não há saída fácil, nem há utopia escondida.
Além disso, o livro problematiza o poder da linguagem, outro dispositivo de dominação. Se acessamos o mundo através e pela palavra, as que são interditadas e substituídas por eufemismos revelam como o controle do discurso é também controle do pensamento, e como a perda de acesso pleno à linguagem pode ser perigosa. Pessoalmente, considerei a leitura fluida e arrebatadora. Mais que chocar, ela me trouxe reflexões sobre o papel da linguagem, da violência e da própria literatura em confrontar aquilo que muitas vezes preferimos não nomear.

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