[Resenha] Sou uma tola por te querer de Camila Sosa Villada
- Clube Gaterário

- 24 de set.
- 6 min de leitura
No dia 06 de setembro de 2025, nos reunimos para conversar sobre o livro da escritora argentina Camila Sosa Villada. Estávamos todas muito animadas para a discussão, tanto por se tratar de uma obra da literatura latino-americana quanto pela forma como a autora combina elementos históricos, autobiográficos e fantásticos, transformando-os em uma narrativa que nos desloca do lugar de conforto. A leitura nos fez confrontar realidades que não são as nossas e, desse encontro, nasceu a resenha coletiva que você pode ler a seguir:

Considerações da Hillary:
Camila se tornou uma conhecida e aclamada escritora argentina com o seu romance Las malas (no Brasil: As malditas (2025) ou O parque das irmãs magníficas (2021). Como protagonistas de muitas das suas histórias, temos pessoas que fazem parte da comunidade LGBTQIAP+, pessoas que ainda pouco protagonizam histórias que não sejam exposição de dor e sofrimento apenas por fazer parte da comunidade.
Nessa coletânea de contos Sou uma tola por te querer, somos apresentados a nove grandes mundos em espaços e tempos diferentes. Camila nos apresenta a distintos personagens e vivências com pano de fundo, personalidade e construção psicológica própria, mesmo nos contos mais curtinhos. Camila tem sempre as palavras certas para personificar e humanizar a todos. Sua escrita é tão vívida que até as suas ficções históricas e suas fantasias poderiam ser histórias reais. Com esses personagens, passeamos por infâncias, vidas adultas, masculinas, femininas e queer, Argentina, México, Nova York, branco, pardo e negro, e até mundos enigmáticos e outros pós-guerra, totalmente reais e totalmente fantásticos.
Com a leitura desses nove contos, temos a oportunidade de sair do comum dos best-sellers de romance heteronormativos. Em cada conto, em poucas páginas, somos mergulhados em personagens que nos cativam por identificação ou por empatia, com estranhamento ou por fantasia, com muitos personagens que fazem parte da sua comunidade, mas sem tentar ser educadora sobre o assunto. São pessoas comuns que vivem histórias extraordinárias.
A narrativa de Camila é crescente, nos apresentando a novas imagens a cada parágrafo, ao mesmo tempo que nos deixa ávidos por mais. São narrativas completas, sem necessidade de complementos, que só nos deixam com água na boca por viver mais naquele mundo, mas não peca com falta de informação.
Um ponto a mais que destaco nesses contos, por ter lido o original em espanhol, é a adaptação de Camila referente à língua espanhola, quanto à gramática (como o voseo argentino: “Si lo querés, es tuyo” e “[...] no te voy a mentir a vos.” e o tuteo mexicano: “Tú puedes peinar a mil estrellas.” e “Que te seques, que te comas esta ciudad hasta desaparecerla entera.”), quanto à vocabulário (com gírias diferentes da Argentina: “Él inmediatamente dirige su bulto al…” e do México: “¡Dos jotos sueltos en Nueva York!), e quanto a histórias locais, como a Difunta Correa, personagem popular argentina, e a Cotita de la Encarnación, personagem popular mexicana, nos deixando muito imersos em diferentes regionalidades latinas.
Em tempo, talvez seja necessário destacar que o mágico e o realismo presentes nos contos fantásticos de Camila não andam de mãos dadas para que suas histórias sejam colocadas na caixinha do gênero Realismo Mágico. As narrativas são mágicas, podem ter toques de realismo, mas não fazem parte do Realismo Mágico só porque são narrativas latino americanas, visto que temos outra infinidade de gêneros para colocá-las e deixá-las todas em uma única caixinha é reducionista (da mesma forma que não é ideal encaixar nesse realismo mágico qualquer narrativa realista com toques de magia de fora da América Latina, considerando que o crescimento do gênero e a formação das suas características foi com a literatura latina).
Ao escrever fantasia em Las malas, Camila precisou destacar que o realismo representado pela violência ali presente não anula o fato de que aquele mundo, no geral, não existir, não ser realista; ou seja, nada de realismo mágico, só o mágico com toques de realismo. E o mesmo é possível perceber nos contos fantásticos de Sou uma tola por te querer. Ainda que a narrativa comece parecendo fazer parte do mundo real, logo ela escala para uma fantasia pesada que jamais seria vista como cotidiana.
Como exemplo, trago o principal representante do Realismo Mágico, ainda na atualidade: Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez. Os eventos mágicos que ocorrem nessa narrativa são apenas vividos, como a chuva que dura anos, a epidemia de insônia, a presença constante de fantasmas, a subida de uma personagem ao céu na sua morte. Tudo acontece não só em Macondo, sob os olhos de todos, inclusive de visitantes, e sem discussões sobre como e porquê. Já as narrativas fantásticas de Camila acontecem em lugares fechados dentro de muros, com um tipo de seita secreta, questionados pela protagonista, ou em mundos escondidos em florestas separadas do mundo, com magias que não se estendem para fora dali. Se o surreal presente não é questionado, é porque só existe dentro daquele mundinho surreal ali. Ou seja, muito mágicos, pouco realistas.
Em resumo, a narrativa de Camila é rica e surpreende mesmo quando se começa a leitura com boas expectativas. Ela sabe nos pegar, desenhar coisas novas e nos segurar do início ao fim.

Considerações Ana Carolina
O livro é uma verdadeira ode à libertação. Camila Sosa Villada retrata, de forma sensível e ao mesmo tempo atordoante, a experiência da transgressão e expõe com intensidade a violência vivida por pessoas trans. Seus contos conferem um tom quase sagrado ao que é marginalizado, resgatando e empoderando vozes e discursos que foram historicamente silenciados e controlados.
Na construção narrativa, percebe-se uma forte presença da fantasia popular. É instigante notar como a autora recusa a categoria de “realismo mágico” e se identifica com o que chama de “realismo pobre”. De pobre, no entanto, só têm as histórias atravessadas por dor e exclusão, pois sua escrita é envolvente e viva: é possível “ver” os personagens em suas peles, ouvir os sons ao seu redor e sentir aquilo que eles experienciam, tamanha é a força de sua linguagem.
Um símbolo recorrente na obra é o da carne. Na tradição religiosa, a carne está atrelada ao pecado, e, nesse sentido, o corpo trans é punido e julgado simplesmente por existir. Essa perspectiva confere ao texto um caráter subversivo, especialmente porque a autora cresceu em uma família profundamente religiosa, o que deixa marcas visíveis em sua escrita.
É difícil escolher um conto favorito, mas Cotita de la Encarnación merece destaque. Nesse texto, pode-se observar uma aproximação com a chamada metaficção historiográfica, já que Villada recupera a figura real de Cotita — uma travesti que viveu em Córdoba no século XIX e que acabou sendo brutalmente castigada em praça pública por desafiar normas de gênero e moralidade da época. Ao reinscrever essa memória na literatura, a autora confronta o esquecimento histórico e questiona a própria lógica da memória coletiva, revelando como a historiografia oficial escolhe quem merece ser lembrado. A narrativa recria poeticamente esse episódio e pode ser lida como uma procissão paralela à de Jesus em direção à crucificação: o corpo exposto, os julgamentos, a violência. Mas, em meio ao sofrimento, há também uma ponta de esperança e, sobretudo, a afirmação da força de pertencer a si, de ser quem se é, ainda que isso custe a própria vida.
Assim, Sou uma tola por te querer denuncia a violência, mas também sacraliza a resistência, inscrevendo no literário as histórias de quem ousa existir.

Considerações Ana Claudia
Sou uma tola por te querer, de Camila Sosa Villada, é uma obra que aborda a complexidade da vida trans de forma honesta e visceral. A autora transforma experiências de dor, desejo, amor e solidão em relatos que emocionam, mostrando personagens que lutam por identidade e pertencimento em um mundo hostil. A escrita de Villada é poética, intensa e ao mesmo tempo direta, capaz de tocar o leitor. É uma leitura que incomoda, emociona e permanece na memória muito depois de virar a última página.
O primeiro conto me marcou profundamente, ele já dá o tom do livro e mostra a força da narrativa, que mistura experiências pessoais da autora com elementos de ficção. É justamente essa combinação que torna a leitura tão intensa: há pedaços autobiográficos que nos conectam diretamente com a vida de Camila, mas também há liberdade literária para criar e explorar histórias que vão além de sua própria experiência.
Um ponto que chamou minha atenção foi a forma como Camila define o gênero da obra. Ela prefere falar em “realismo pobre” em vez de simplesmente classificá-la como realismo mágico. A escolha faz sentido, já que os contos têm crueza e proximidade com o cotidiano, aproximando-nos das personagens, mas ainda carregam um lirismo sutil que dialoga com elementos fantásticos sem se perder na realidade.
Por fim, Sou uma tola por te querer se destaca como uma obra única, que mistura memória, ficção e sensibilidade, convidando o leitor a enxergar o mundo com mais empatia e a refletir sobre a força e a resistência das pessoas que vivem à margem da sociedade.





















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